FOME
ZERO
por Marcelo Wysocki
Thin, da HBO, debate os distúrbios alimentares na temporada em que os
eventos de moda no Brasil criam regras para garantir modelos saudáveis.
"Eu quero muito ser magra. Se para isso eu precisar morrer, então que seja
assim." As palavras saem dos lábios torturados de Alisa. Aos 30 anos, ela
tem dois filhos, uma casa confortável, um carro e um cachorrinho. É uma mulher
bonita, mas isso não basta. Ao olhar-se no espelho, inexplicavelmente, não
gosta do que vê. Ela sofre de um mal secreto comum a cinco milhões de
norte-americanas: a anorexia. Depois de tomar café da manhã com os filhos,
dirige-se ao banheiro, agacha-se sobre o vaso sanitário e vomita.
A cena é mais chocante por ser mostrada com tanta naturalidade no documentário
"Thin", do canal HBO. "Thin", em inglês, significa magro. O
filme, dirigido pela fotógrafa Lauren Greenfield, trata da luta de quatro
jovens americanas, com idades entre 15 e 30 anos, contra distúrbios
alimentares. O assunto entrou em evidência no Brasil depois da morte trágica,
em novembro do ano passado, da modelo Ana Carolina Reston. Ela foi vítima de
infecção generalizada, decorrente de um quadro de anorexia.
"Tentei o suicídio depois de comer dois pedaços de pizza", conta Polly, uma das pacientes em recuperação.
Internadas numa clínica para tratamento de distúrbios alimentares, localizada
no sul da Flórida, EUA, as garotas são exemplo de uma realidade que vai além da
estética e da vaidade. No mundo, mais de 90% dos pacientes com bulimia e
anorexia nervosa pertencem ao sexo feminino. Apenas três em cada dez pacientes anoréxicas superam o problema, ganham peso normal e voltam a ter
menstruações regulares. Uma em cada quatro continua sendo crônica. Mas 10%
jamais encontram a cura. Elas morrem em conseqüência da desnutrição ou cometem
suicídio.
No Brasil, cerca de 53% da população feminina, algo próximo a 45 milhões de
mulheres, faz regime regularmente. Detalhe: hoje, a anorexia tem se manifestado
cada vez mais cedo. Antes, a idade-padrão era de 15 anos. Mas o número caiu
para até 11 anos e vem diminuindo cada vez mais.
Outro agravante é a difusão de dietas milagrosas em milhares de sites, fóruns e
blogs nos quais os usuários propagam anorexia e bulimia como estilo de vida.
"Adoro Ser Anoréxica", por exemplo, documentário exibido pela GNT,
mostra como algumas garotas se comportam na corrida para perder peso. Elas se
tratam de "Ana" (as anoréxicas) e "Mia" (as vítimas de
bulimia).
Os homens são menos propensos a distúrbios alimentares. "Acontece, mas é
raro. Em torno de 90% a 95% dos casos ocorrem com mulheres. No Ambulim, serviço
que mantemos no Hospital das Clínicas há 14 anos, mais de 700 pessoas já foram
atendidas e o número de homens não chegam a dez", afirma Táki Cordas,
médico psiquiatra e professor de Psiquiatria na Universidade de São Paulo.
"Nos EUA parece que esse número se situa entre 10% e 15%, mas sabe-se que,
nas clínicas privadas, o número de crianças e adolescentes cresceu."
Mauro Fisberg, médico-nutólogo, professor da Universidade Federal de São Paulo
e coordenador do Projeto Saúde-Modelo do Centro de Atendimento e Apoio do
Adolescente (Unifesp), concorda. "A adolescência é uma fase de risco por
si só, quando se determinam mudanças significativas na composição corporal de
uma pessoa", afirma.
POLÊMICA
À VISTA - Os organizadores da São Paulo Fashion Week, o
maior evento de moda da América Latina, se mobilizaram para discutir e mostrar
que tais distúrbios não estão restritos às passarelas.
A partir de agora, as modelos deverão apresentar atestado médico que comprove o
bom estado de saúde. Outra mudança: a idade mínima para desfilar passou a ser
16 anos. Para Paulo Borges, idealizador da SPFW, estas medidas visam mudar o
hábito de todos a curto, médio e longo prazo. "Mode é saúde, beleza e
vitalidade. Por que as meninas brasileiras, a partir de 1996, mudaram o olhar e
a estética da moda para o mundo? Porque os nomes como Adriana Lima, Alessandra
Ambrósio, Gisele Bündchen e Isabeli Fontana deram curvas femininas à moda. Com
isso, a moda ganhou uma expressão saudável e vibrante", avalia.
Em setembro de 2006, as autoridades de Madri, Espanha, proibiram as modelos
muito magras, com IMC (Índice de Massa Corporal) inferior a 18 de desfilar. Das
68 modelos inicialmente inscritas, cinco foram barradas. Mas, na Semana de Moda
de Milão, is estilistas italianos boicotaram a atitude. Em contrapartida, o
estilista francês Jean-Paul Gaultier chamou a atenção para a questão quando
colocou a modelo americana Velvet, que pesa 132 quilos, para desfilar de
lingerie. A SPFW adotou, já para esta temporada, o IMC de 18,5.
"É importante desmistificar a magreza das modelos. Temos que lembrar que a
maioria delas são magras por natureza, e não desnutridas. A magreza não
significa, necessariamente, doença", diz Fisberg, que desde 1986 lida com
adolescentes aspirantes a modelos e modelos profissionais, num trabalho em
parceria com grandes agências, como Elite, Ford e Mega. Fisberg lembra também
que quase sempre as modelos chegam ao consultório porque querem manter o peso
ou já engordaram e desejam emagrecer. Quanto maior o tempo de profissão pior o
padrão alimentar.
Que o diga a modelo brasileira Daniele Oneda. Com uma trajetória profissional
bem-sucedida no exterior, ela conta que precisou ajudar outra modelo nesta
batalha. "Morei com outras três meninas em Milão, na Itália, e uma delas
ia ao banheiro a toda hora para vomitar", lembra Daniele, de passagem pelo
Brasil para curtir férias ao lado dos familiares e amigos. "Ela chorava
muito e nunca visitava o médico. Mas hoje em dia ela está ótima, com uma
excelente carreira", afirma, aliviada, a modelo de 23 anos.
Morando atualmente na China, Daniele - que tem 1,78m de altura e 56kg - diz que
no Brasil não existe tanta pressão para que as modelos sejam magras. "Lá
fora, em muitas agências, eles chegam com a fita métrica na mão para tirar as
medidas. Certa vez, no Japão, disseram que eu teria que perder dois centímetros
de quadril. Claro que outra pessoa pegou o trabalho, porque não fiz nada para
chegar ao peso exigido. Mas peguei outros", recorda a moça, que já
trabalhou para grifes como Dior, Louis Vuitton, Chanel e Gucci.
O certo é que o mundo da moda é tão competitivo quanto qualquer outra área. A
profissão de modelo tem suas exigências. É assim para os advogados, dentistas,
arquitetos etc. "Em cada profissão são exigidos alguns pré-requisitos.
Para ser modelo, uma das exigências é que as meninas estejam num padrão atual
para a indústria da moda. Hoje, um desses pré-requisitos é que a modelo tenha
no máximo manequim número 38. Isso não quer dizer que ela seja
desnutrida", diz Alexandre Herchcovitch, um dos mais badalados estilistas
brasileiros.
Já Paola Anita Robba, estilista que há duas décadas atua com moda praia da
grife Poko Pano, acredita que antigamente a cobrança era muito maior.
"Essa tal ditadura da moda está mais maleável hoje. Quando comecei, as
meninas eram praticamente anoréxicas", diz Paola. "Mas é importante
que os pais acompanhem os filhos. Eles devem sempre estar próximos deles",
afirma.
Lilian Pacce, editora de moda e apresentadora do "GNT Fashion",
compartila as idéias do estilista. "As agências são empresas. E a empresa
é o patrão da história. Como todo patrão, interessa para eles que as modelos,
os seus funcionários, estejam saudáveis", afirma a jornalista, acostumada
a acompanhar as temporadas de moda na Europa e nos EUA. "A moda acaba
projetando um sonho. Mas para despertar esse desejo, quem está lá tem de ser o
cabide da roupa. A modelo magra é quem pode despertar esse desejo. Não pelo
pouco peso, mas pelo jeito que a roupa vai ficar nela. A passarela aumenta a
modelo em pelo menos 4kg, o vídeo engorda, a fotografia também. Todo mundo
pensa que a Gisele Bündchen é um mulherão, mas ela é magra. Uma magra
curvilínea, por isso é tão especial. Na passarela, vira um mulherão", diz
Lilian.